Uma História da Curiosidade | Alberto Manguel




"Gostamos de pensar, como faz Dodo, que, independentemente da direção em que corramos ou da incompetência com o que o façamos, todos devemos ser vencedores e todos temos direito a um prémio. Como o Coelho Branco, damos ordens a torto e a direito, como se os outros fossem obrigados a servir-nos (e tivessem prazer nisso). Como a Lagarta, questionamos a identidade das outras criaturas, mas mal conhecemos a nossa, mesmo quando estamos à beira de a perder. Acreditamos, como a Duquesa, que devemos castigar o comportamento irritante dos jovens, mas pouco nos interessam as razões desse comportamento. Como o Chapeleiro Louco, sentimos que só nós temos direito a comer e a beber numa mesa posta para muitas mais pessoas, e oferecemos com cinismo a quem tem sede e fome vinho, quando não há vinho, e compota, todos os dias menos hoje. Sob o domínio de déspotas como a Rainha Vermelha, somos obrigados a participar em jogos loucos com instrumentos desadequados - bolas que rebolam para longe, como ouriços, e tacos que se viram e reviram, como flamingos - e, quando não cumprimos as regras, ameaçam cortar-nos a cabeça. Os nossos métodos educativos, como o Grifo e a Tartaruga Fingida explicam à Alice, ou são exercícios de nostalgia (aprender «Patim e Prego) ou cursos de formação para servir outros (como ser lançado ao mar com as lagostas). E o nosso sistema de justiça, muito antes de Kafka o descrever, é como o que se monta para julgar o Valete de Copas: incompreensível e injusto. Poucos entre nós, contudo, têm a coragem de Alice, que, no final do livro, se ergue (literalmente) para defender as suas convicções e recusa calar-se. É graças a esse ato supremo de desobediência civil que Alice pode acordar do sonho. Nós, infelizmente, não podemos."

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